Notas Gerais



Nas condições em que a proposta de criação da obra surgiu, pesou muito a vontade de fazer dela também um exercício de economia de meios. Dessa forma tudo se desenhou – tanto em termos musicais, como cénicos – para que apenas dois actores e cinco músicos se encarregassem de criar toda a complexa teia de mais de vinte personagens em todos os três autos, desdobrando-se nos mais diversos e contrastantes registos. Tal desafio levou a que se procurasse soluções musicais e cénicas capazes de tornarem viável esse propósito.

Cada instrumentista participa também, de forma enfática, na composição de diversos personagens. Isso é particularmente evidente no Auto da Barca do Purgatório, no qual todas as cenas são introduzidas por um solo instrumental absoluto, tentativa de incarnação sonora de uma personagem e espécie de seu duplo em toda a cena. Existem também muitas outras situações em que o desempenho dos instrumentistas se combina com os actores. E todos cantam ou podem cantar.
Há diversos aspectos em que o trabalho sobre esta obra permite mudanças e ampliações, nomeadamente no que respeita ao número e tipo de vozes utilizadas (actores, solistas ou coro). O que se diz das vozes faladas ou cantadas, pode aplicar-se também relativamente à percussão.

Muitas vezes as partituras não indicam expressamente quais os instrumentos de percussão a utilizar, de que tipo e em que número, pretendendo deixar a sua definição ao critério de cada produção, de acordo com os recursos existentes. Assim, o número e tipo de instrumentos de percussão pode ser relativamente modificado, nomeadamente em muitas situações em que a percussão sublinha ou pode sublinhar algum elemento do texto e da acção. Desta forma há lugar para comentários ou intervenções da percussão, para além daqueles que estão previstos na partitura. O mesmo se diga do número de executantes.
A perspectiva original da obra também inclui a possibilidade de qualquer dos autos se preparar e apresentar com um número maior de actores ou de músicos. Isso poderá permitir que mais pessoas se envolvam na interpretação. Numa perspectiva pedagógica – e uma vez que os Autos das Barcas são obras com presença nos programas de estudo da língua portuguesa – também será possível apresentar apenas algumas selecções de cenas, de acordo com os recursos e contextos de cada produção.

Fernando C. Lapa

Nota de Intenções



Pensar em levar à cena o tríptico dos Autos das Barcas levanta, desde logo, muitas perguntas e ainda mais responsabilidades. O enfoque particular desta proposta consiste na convocação da música para o território da cena, participando activamente no desenho de cada momento, assumindo-se como o veículo condutor do espectáculo.

O presente desafio consiste em encontrar outros recursos que não os de um palco convencional, outras formas de exprimir as linhas de força do texto, o diálogo entre o verbo e a composição sonora, e o despojamento cénico de uma obra conhecida pela riqueza de adereços, pormenores e espaço visual.

Não se trata aqui de qualquer um dos vários formatos de ópera, de uma ópera em versão de concerto, de um exercício de leitura do texto teatral com suporte sonoro, de uma música de “intermezzi” como comentário do texto. Ou seja, não se trata de uma leitura convencional, centrada principalmente nos recursos da cena. Antes, de uma certa reinvenção do formato, jogando de forma positiva com a economia de meios e pedindo à música um papel mais presente e sustentado, nomeadamente naquilo que é o seu território de eleição: a capacidade de criar personagens e ambientes, de sugerir movimentos, de sustentar acções, de criar imagens sonoras a partir de excertos ou diálogos, podendo até apoderar-se deles e substituí-los.

Se são normalmente os actores os condutores e principais protagonistas da acção, esta nova leitura desafia os músicos a assumirem o mesmo papel: tanto na intervenção cantada de algumas partes do texto, quanto e sobretudo no desenvolvimento musical de tudo o que amplia palavras ou movimentos. Aqui os instrumentistas também são actores, com diversas marcações no espaço de cena. Mas não serão menos actores, quando com os seus instrumentos ou vozes ampliam as ressonâncias de uma fala, ou quando permanecem na sombra, por detrás do texto, mantendo imperceptivelmente a cor de um momento ou a tensão de um ambiente.

É uma proposta que dilui hierarquias, não tratando nenhuma arte como menor, e que encontra nos Dias da Música um pretexto para abrir possibilidades e acepções de o que é concerto, o que é teatro, o que é música, e o que é palavra, provando que todos podem habitar o mesmo espaço, ou – neste caso – a mesma sala.

Sara Barros Leitão e Fernando C. Lapa

Apontamento Sobre Os Autos Das Barcas De Gil Vicente



Na perspectiva que propomos, os autos que compõem a Trilogia das Barcas de Gil Vicente são espectáculos musico-teatrais desenhados em formato de câmara, encomendados para a edição de 2018 dos Dias da Música, no Centro Cultural de Belém. Nas suas três obras distintas – Auto do Inferno, Auto do Purgatório e Auto da Glória – dois actores e cinco músicos partilham entre si tudo o que é apresentado no palco, saindo por vezes da sua própria esfera, trocando de papéis e funções.

A música não ocupa apenas o espaço de comentário entre cenas, ou de ressonância de algum momento particular. Pretende acompanhar verdadeiramente toda a cena, mantendo-se insistentemente por detrás das vozes faladas, alargando a expressão ao canto individual ou em coro, ou substituindo enfaticamente a caracterização expressiva de algumas personagens.
Para o novo formato que agora desenhamos, mais do que criar um espectáculo único a partir destes três autos de Gil Vicente, articulamos algumas cenas principais, de modo a recriar mais sinteticamente o ambiente e o espirito de cada um dos autos originais, procurando manter a linha caracterizadora que tinha sido adoptada aquando da criação anterior.

Desta forma foram retomadas algumas ideias condutoras: o caracter polifacetado, ágil e contrastante, que transparece da generalidade das cenas do Auto da Barca do Inferno; um exercício sobre a passagem do tempo – tempo de espera, de paciência, de esperança – interiorizado e emocionalmente intenso, que lemos no Auto da Barca do Purgatório; e a construção hierarquizada e progressiva, qual cerimonial da corte e da catedral, que marca todo o Auto da Barca da Glória.

A visão global, incarnada por tantas figuras tão magistralmente caracterizadas por Gil Vicente, expressa-se agora num largo espectro, que vai desde o ambiente escuro do inferno e da condenação, aos lampejos das harmonias da glória, que viajaram do Auto do Purgatório.

Fernando C. Lapa

Notas Biográficas



Fernando C. Lapa
Compositor

Nascido em Vila Real, em 1950, fez os seus estudos musicais no Conservatório de Música do Porto, onde concluiu o Curso Superior de Composição, na classe do Prof. Cândido Lima. Autor de uma obra considerável, estreou até ao presente mais de três centenas de peças, nos domínios da música sinfónica ou da ópera, incluindo concertos e repertório coral-sinfónico, passando pela música coral, de câmara, para teatro ou cinema, etc. Diversas obras suas têm sido repetidamente executadas, em centenas de concertos, tanto em Portugal como em outros países, sendo algumas delas transmitidas pela RDP, RTP e outras estações de rádio e televisão. Está representado em dezenas de gravações em CD e tem partituras editadas em Portugal, França e Alemanha. Dirigiu o Coro Académico da Universidade do Minho durante 16 anos, tendo-se apresentado à frente desta formação em mais de 300 actuações e concertos, em Portugal e outros países. Foi professor de Análise e Técnicas de Composição no Conservatório de Música do Porto desde 1984 e de Composição e Orquestração na Escola Superior de Música e das Artes do Espectáculo, no Porto. É frequentemente convidado para colóquios, palestras e cursos, ou para fazer parte dos júris de inúmeros prémios e concursos, muitas vezes na qualidade de presidente. Autor de cerca de três centenas de textos de crítica musical no jornal “Público”, entre 1994 e 2006, tem ainda vários artigos publicados em livros, revistas e jornais.

Toy Ensemble

Tem como objetivo promover a divulgação e a expansão do cânone da cultura lusófona, articulando nas suas apresentações música, literatura e artes visuais. Desde a sua criação em 2013, o grupo realizou várias estreias em Portugal e Brasil entre elas Como Nasceram as Estrelas – 12 Lendas Brasileiras de Clarice Lispector, Homero dos Contos Exemplares de Sophia de Mello Breyner e Trilogia das Barcas de Gil Vicente, música de Fernando Lapa; Rei Lear de Shakespeare/Alexandre Delgado; Dois Personagens Portugueses de Rui Coelho, Domitila de João Guilherme Ripper e as óperas A Rainha Louca, O Doido e a Morte, Tríptico Camoniano, Ciclo Quinhentista e És Lisboa una Octava Maravilla de Alexandre Delgado, tendo-se apresentado no Brasil em importantes salas e teatros como Theatro da Paz, Museu do Estado do Pará em Belém, Sala Cecília Meirelles, Auditório da Academia Brasileira de Letras no Rio de Janeiro, Theatro Carlos Gomes no Espírito Santo, Theatro Santa Isabel em Recife, Auditório do Conservatório Dramático de Música de Tatuí Dr. Carlos de Campos, A Hebraica em São Paulo, e em Portugal no Centro Cultural de Belém CCB em Lisboa, Cine-Teatro Avenida, Castelo Branco, Auditório do ISEG, Casa das Artes Famalicão, Teatro Diogo Bernardes Ponte de Lima , em festivais como os Dias da Música em Belém CCB-Lisboa, Cistermúsica de Alcobaça, Festival Internacional de Música da Póvoa do Varzim, Festival Virtuose em Recife, FIMUPA Festival de Internacional de Música de Belém do Pará, Festival Percursos da Música Ponte de Lima entre outros. Divulgando a música e os intérpretes portugueses, recebeu diversos apoios à internacionalização e projectos pela DGArtes e Instituto Camões, tendo levado ao Brasil para concertos e oficinas pedagógicas mais de 60 intervenientes entre músicos, cantores, actores, encenadores e programadores de destaque no panorama musical português, criando laços e pontes de trabalho.
O projecto Trilogia das Barcas Gil Vicente/Fernando Lapa estará presente no Museu Nacional do Teatro e Dança na exposição mais importante realizada na Europa sobre Gil Vicente: Gil Vicente Portugal e Espanha nos primórdios do teatro europeu, com abertura em 26 de outubro de 2023.
Recebeu ainda apoio à Internacionalização da DGArtes para apresentação das Barcas de Gil Vicente/Fernando Lapa e oficinas em África 2023.
Discografia: ópera Domitila de João Guilherme Ripper (1ª gravação mundial – 2019), apoio Antena 2 (disponível nas plataformas digitais), Trilogia das Barcas (Inferno, Purgatório e Glória) de Gil Vicente/Fernando Lapa, apoio DGArtes, e AVA Editions (também disponível nas plataformas digitais).

Ficha Técinca



Compositor: Fernando Lapa
Adaptação de Textos: Sara Barros Leitão e Fernando Lapa

Toy Ensemble

Clarinete e Clarinete Baixo: Ricardo Alves
Violoncelo: Jed Barahal
Piano: Christina Margotto
Viola e Violino: David Lloyd
Voz e Percussão: Magna Ferreira
Vozes: Mário Alves, Ângela Marques, Magna Ferreira, Pedro Telles
Gravação, edição , mistura e masterização: Rodolfo Cardoso
Direção musical: Fernando Lapa
Vídeo: Martin Lloyd
Fotofrafia: Martina Barahal
Design e Ilustração: Paulo Patrício