Versão estreada em 29 de Abril, nos Dias da Música de 2018, na Sala Almeida Negreiros do Centro Cultural de Belém.
O Auto da Barca da Glória, último deste tríptico, o único que foi escrito em castelhano, também por isso se distingue dos anteriores. Assinala-se a sua primeira apresentação em 1519, na presença da Rainha, D. Leonor de Áustria. Por essa razão, “as dignidade altas e os Anjos, mas também o Diabo e a Morte, falam a língua da nova rainha”, como escreve Ernestina Carrilho.
Glória é um desfile de figuras da nobreza e do clero, que se apresentam como almas depois da morte, sendo que a Morte, desta vez, ganha um corpo vivo. “Cada uma das altas dignidades entra em cena pela sua mão, ao ritmo de um movimento de ir e vir, numa imagem teatralizada da Morte como inexorável ceifeira de vidas”, que inspira o ritmo do espectáculo. Organizado de forma estilizada, este auto faz suceder personagens da área do poder, do menor para o maior, numa sucessão hierárquica. A sugestão é de movimentos direcionais ascendentes, enfatizando a progressão em crescendo. É curioso poder verificar como se articula um auto com variados recursos cénicos, aqui apresentado numa perspectiva que privilegia a economia de meios.
Glória terá sido apresentada por ocasião da semana santa, mas apesar de não parecer um auto muito adequado à realidade litúrgica, todos localizam a sua representação nos dias de redenção.
Sara Barros Leitão
Fernando C. Lapa
Ouça Um Excerto
Texto da Partitura
“Auto da Barca da Glória”
Gil Vicente, 1519
Adaptação Dramatúrgica: Sara Barros Leitão
PRÓLOGO
ANJOS cantado
À glória, à glória.
À glória, à glória.
A
DIABO
Patudo vai mui saltando
chama-me a Morte cá
diz-lhe que ando
navegando
e que a estou
esperando que logo
voltará.
MORTE
Que me queres?
DIABO
Que me digas por que és
tanto dos pobrezitos
baixos homens e mulheres
destes matas quantos queres
e tardam grandes e ricos.
Na viagem
primeira m’enviaste
oficiais
não foi mais de um cavaleiro
e do povo grosseiro
deixaste os principais.
E vilanagem
na segunda viagem
sendo meu barco vazio.
Ah pesar de mi linhagem
os grandes de alto estado
como tardam em mi passagem.
B
MORTE
Têm esses mais guaridas
que lagartos d’arenal.
DIABO
De carne são e de ossos
Venham venham que são nossos
nosso direito real.
MORTE
Já o dissera
sua dívida paga me fora
mas tempo lhes dá Deus
e preces lhes dão espera
Porém, a dívida é verdadeira
eu os porei ante vos.
Vou-me lá de soticapa
a mi estrada seguida
verás como no m’escapa
desde o Conde até o Papa.
Presta atenção à partida.
DIABO
Em boa hora.
CENA 1
Vem a Morte e traz o Conde, e diz a Morte:
MORTE
Fala com aquele barqueiro
que eu vou fazer meu oficio.
DIABO
Senhor Conde e cavaleiro
dias há que o espero
e estou a vosso serviço
todavia
entre vossa senhoria
que bem larga está a prancha
e partamos com o dia.
CONDE
Há muito que és barqueiro?
DIABO
Dois mil anos há e mais
e não passo por dinheiro.
Entra senhor passageiro.
CONDE
Nunca tu me passarás.
A
DIABO
E pois quem?
Olha senhor por itens
os tenho aqui no meu rol
e haveis de passar além.
vês aqueles fogos bem?
Ali se colhe a frol.
Vês aquele gran fumo espesso
que sai daquelas rochas?
Ali perdereis o osso.
CONDE
Grande é Deus.
DIABO
Isso achais vós
gozando ufano a vida
com vícios de dois em dois
sem ter medo de Deus
nem temor da partida.
CONDE
Tenho mui firme esperança.
DIABO
Sem obras a confiança
faz aqui muita fortuna.
Suso andemos
entrai senhor não tardemos.
B
CONDE
Vou-me a estoura embarcação.
DIABO
Ide que vos esperaremos.
CONDE
Oh mui preciosos remos
socorrei minha aflição.
Lição primeira:
C
Oh perdoa-me meu Deus
que vazios são os meus dias
por que dás tu poder ao homem e dás senhorio
e logo dele te desvias?
Ajudai-me remadores
das altas hierarquias
favorecei meus temores
pois sabeis quantas dores
por mim sofreu o messias.
D
DIABO
Agora se vos acordou.
El asno muerto cebada
De vós bem seguro estou
pensareis que não sei eu
da vossa vida passada.
CONDE
Eu te interrogo.
DIABO
Vós senhor Conde agorero
fostes a Deus perezoso
a lo vano muito ligeiro
às fêmeas deleitoso
e aos pobres reguroso.
Viva vossa senhoria
para sempre com querela.
CONDE
Oh gloriosa Maria.
DIABO
Nunca uma hora ou dia
vos vi dar passo por ela.
CENA 2
Vem a Morte e traz um Duque e diz:
MORTE
Vós senhor
Duque de grande primor
pensastes de m’escapar.
DUQUE
Oh alma pecador
com fortíssima dor
sais de fraco lugar.
Como ficas corpo triste
dá-me novas, que é de ti?
Sempre em guerra me trouxeste
com dor me despediste
sem ter dó de mi.
DIABO
Oh meu Duque e meu castelo
minha alma desesperada
sempre fostes amarelo
feito d’ouro de martelo
esta é vossa pousada.
DUQUE
Cortesia.
DIABO
Entre vossa senhoria
senhor Duque e remarás.
DUQUE
Faze muita maresia
estoutra barca é a mia
e tu não me passarás.
A
DIABO
Vês aquela ponte ardendo
muito longe para além mar
e umas rodas volvendo
de navalhas e ferindo?
Pois ali haveis d’andar
sempre jamais.
DUQUE
Retro vai Satanás.
DIABO
Lucifer que m’acrescente
senhor Duque ali irás
que a ousadia t’arrevente.
Lição:
B
DUQUE
Diga-me senhor por que
tão cedo me derrocaste
de cabeça.
Rogo-te que no escaeza
do barro me fizeste
não permitas que pereça.
E se quiseres que padeça
para que me redimiste?
Pelle et carne me vestiste
ossibus nervis et vita
misericórdia atribuíste
ao homem que tu fizeste
pois agora me visita.
C
DIABO
Ralear
que vos tenho de levar
aos tormentos que vistes.
Por demais os é rezar
que o que meu me hão-de dar
a vós mesmo a mim os deste.
DUQUE
Oh chaga daquele costado
da paixão dolorosa
de meu Deus crucificado
redimo ao desterrado
de sua pátria gloriosa.
Embarquemos
porque vossos são os remos
nosso é o capitão.
DIABO
Eso está en vello hemos.
DUQUE
Oh anjos que faremos
que não nos deixa Satanás?
DIABO
São as leis divinas
tão fundadas em direito
tan primas e tan iguais
que Deus os quisera mortais
remediar vosso feito.
Remadores
enviade-me mais senhores
que se tardam muito aí.
DUQUE
Em vão sofreu dores
Cristo pelos pecadores?
Mui impossível será.
Pois é certo que por nós
foi levado ante Pilato
e acusado sendo Deus
senhores não penseis vós
que le custamos barato.
E chicoteado
seu corpo tão delicado
só de virgem nascido
sem pai humano gerado
e depois foi coroado
de sua coroa ferido.
CENA 3
Vem a Morte e traz um Rei, e diz o Rei:
MORTE
Senhor qu’é de vossa alteza?
REI
Oh regurosa pergunta
pois me a tens defunta
não ressuscites a tristeza.
Oh ventura
fortuna perversa escura
pois a vida desaparece
e a Morte é de tristura
adonde estás glória segura
qual ditoso te merece?
DIABO
Senhor quero caminhar
vossa alteza há-de partir.
REI
E por mar hei-de passar?
DIABO
Sim e ainda tem que suar
que não foi nada o morrer.
Pasmareis
se olhares daqui vereis
ali sereis morador
naqueles fogos que veis
e chorando cantareis
“Nunca foi pena maior”.
Lição:
A
REI
Minh’alma s’enoja já
da minha vida dolorida
pois a glória que desejo
impede-me que veja
a mui pecadora vida
que passei.
Palavras mui dolorosas
de mi alma falarei
a meu Deus e lhe direi
com lágrimas piedosas:
não me condenes
indica-me por que
não deixas quem me ampare:
se ao inferno baixar
teu então eu serei?
Ai de mim
cur me iudices ansí
pois de nada me fizeste
manda-me passar daqui
ampara-me filho de Davi
que do céu descendeste.
Responso:
B
Oh meu Deus não recordareis
peccata mea te rogo
naquele tempo dum veneris
quando o século destruíreis
com tua gran maldade por fogo.
Dirige a mi
vias meas pera ti
que apareça em tua presença.
C
DIABO
Vossa alteza virá aqui
porque nunca cá senti
que aprovechase adherencia.
Nem lisonjas, crer mentiras
nem voluntário apetite
nem portos, nem algeciras
nem diamantes, nem safiras
senão apenas esse espírito
será assado.
Porque fostes adorado
sem pensar serdes de terra,
com os grandes alterado,
dos jovens descuidado,
fulminando injusta guerra.
D
REI
Oh remos de gran valor
oh feridas por nós feitas.
DIABO
Ora a nosso redentor
nosso Deus e criador
que te dê segundas vidas.
Porque é tal
a morada divinal
e de glória tão alta
que a alma humana
se não vier ouro tal
nela nunca se esmalta.
REI
Bom Jesú que apareceste
todo em sangue banhado
e a Pilatos ouviste
mostrando-lhe o povo triste:
“eis o homem castigado”.
E alegaram
e com a cruz te carregaram
por todos os pecadores
pois por nós te flagelaram
e até à morte te trouxeram
Fortalecendo nossos temores.
CENA 4
Vem a Morte e traz um Emperador, e diz a Morte:
MORTE
Prosperado Emperador
vossa sacra majestade
não era bom sabedor
quão fortíssima dor
é acabar a idade.
E mais vós
quase tido por Deus.
Eu vou colher outra sorte
vós senhor torne-se forte
que a vã glória te matou.
EMPERADOR
Oh Morte não mais feridas.
Perdoai-nos das nossas ofensas.
Onde me trazes Morte
que te fiz triste de mim?
A
EMPERADOR
Quão estranhos
males da vida d’enganos
torta, cega, triste, amara!
Contigo deixo os anos
entregaste-me meus danos
e voltaste-me a cara.
Meu triunfo aqui queda,
mis culpas trago comigo;
DIABO
É verdade.
Vossa sacra majestade
entrará neste navio
de mui boa vontade
porque usastes crueldade
e infinito desvario.
EMPERADOR
Oh maldito querubim
assim como desceste
de anjo a diabo
querias fazer-me a mim
o que a ti mesmo fizeste.
DIABO
Pois eu creio,
segundo eu vi e vejo,
que de lindo Emperador
haveis de volver mui feio.
EMPERADOR
Não fará Deus teu desejo.
DIABO
Nem o vosso meu senhor.
B
DIABO
Vedes aqueles despeñados
que echan daquelas alturas?
São os mais altos estados
que viveram adorados,
seus feitos e suas figuras.
E não deram,
nos dias que viveram,
castigo aos ufanos,
que os pequenos roeram,
e por seu mal consentiram
quanto quiseram tiranos.
Lição:
C
EMPERADOR
Quis mihi hoc tribuat
ut in inferno protegas me
com minha fraca humanidade
da tua ira e gravidade
onde m’esconder?
Oh senhor,
passe breve teu terror!
A mis culpas da passada
respondo-te com dor
da minha alma perturbada.
Responso:
Oh libera me domine
de morte, eterna contenda;
em ti sempre tive fé
leva-me para junto de ti
in die illa tremenda.
Quando celi
sunt movendi contra mí
e as serras e montanhas
pela bondade que há em ti
que te recordes que nasci
de pecadoras entranhas.
D
DIABO
Aqui vais, aqui venhais,
que cá o tenho escrito.
Por mais que me rejeiteis
vós e os outros ireis
para o inferno bendito.
EMPERADOR
Não há temor:
piedoso é o senhor.
Deus salve seus remadores!
DIABO
Bem venhais Emperador.
EMPERADOR
Angélico resplendor
considere nossas dores.
Adora feridas preciosas
remos do mar mais profundo!
Oh insígnias piedosas
das mãos gloriosas
aqueles que pintaram o mundo.
Esses remos vos deu Deus
para que nos liberteis vós
e passeis de tanta guerra.
DIABO
Não podemos mais fazer
que desejar vosso bem
vosso bem nosso prazer
nosso prazer é querer
que não se perca ninguém.
Que pedes tu lá?
Tenho o paraíso acolá
no le falta sino pena
la pena prestes l’está.
EMPERADOR
A paixão me livrará
da tua infernal cadeia.
Vivo é o esforçado
gran capitão por natura
que por nós foi tan carregado
com a cruz em seu costado
pela rua de amargura.
CENA 5
Vem a Morte e traz um Bispo, e diz o Bispo:
BISPO
Mui cruéis vozes dão
os vermes quantos são
onde minhas carnes estão
sobre quais comerão
primeiro mi coração.
MORTE
Não cureis
senhor Bispo. Feito é:
a todos faço esta guerra.
BISPO
Oh mis mãos e mis pés
quão sem consolo estão
e quão rápida será a terra.
DIABO
Pois que vens tão cansado
venhais aqui descansar
porque ireis bem sentado.
BISPO
Barqueiro tão desestrado
não hás-de Bispos passar.
A
DIABO
Sem porfia
entre vossa senhoria
que este batel infernal
ganhaste por fantasia
halcones d’altenaría
y cosas deste metal.
Daí donde estais vereis
umas caldeiras de pez
adonde cozinhareis
e a coroa assareis
e reduzireis à velhice.
Lição:
B
BISPO
Responde-me quantas são
minhas maldades e pecados
veremos se tua paixão
bastará à minha redenção
ainda mil vezes duplicados.
Pois me fizeste
à tua imagem
e negas tu piedade
à alma que redimiste?
Contra folium escreveste
amargura e crueldade.
Responso:
Ai de mim!
De profundis clamavi
exaudi minha oração.
DIABO
Bispo, parece-me a mim
que haveis de volver aqui,
a esta santa embarcação.
C
BISPO
Oh remos maravilhosos
oh barca nova, segura,
socorro dos chorosos,
oh barqueiros gloriosos,
em vós está a ventura.
Eu deixado
meu triste corpo curado
de vão mundo partido
de todas forças roubado
da alma desamparado
com dores despedido.
Bem basta fortuna tanta:
passade-me esta alma por Deus
porque o inferno m’espanta.
DIABO
Si ela não vem santa
gran tormenta correis vós.
BISPO
Eu confio
em Jesú redentor meu
que por mim se desnudou
pôs suas feridas ao frio
e pregou naquele navio
da cruz donde respirou.
CENA 6
Vem a Morte e traz um Arcebispo, e diz a Morte:
MORTE
Senhor Arcebispo amigo
que vos parece de mi?
Bem pelejastes comigo.
Vou fazer outra ceifa.
ARCEBISPO
Não pode ninguém contigo
e eu nunca te temi.
Oh Morte amara
a vida nos custa caro
e nascer não é proveito.
Oh facções de mi cara
oh mi corpo terra feita.
Que proveito há em viver
trabalhar para descansar
que se monta em presumir
de que serve morrer
candeia para cegar?
Sem prazer
no mundo por vencer
estado de alta sorte
pois logo deixa de ser
nós morremos por ter
e é tudo da morte.
DIABO
O que resta é seguro.
Senhor venha cá esse espírito.
ARCEBISPO
Oh que barco tão escuro.
DIABO
Nele ireis, eu o juro.
ARCEBISPO
Como m’espantas maldito
endiabrado.
A
DIABO
Vás Arcebispo alterado
tereis aqui que suar
morreste mui desatado
e em vida afogada
com desejos de papar.
Quem andou a poja larga
anda aqui pela bolina
o mais doce aqui se amarga.
Vós caístes com a carga
da igreja divina.
Os mendigos
pobres e desamparados
cujo dinheiro vós lograstes
desejosos esfomeados
e os dinheiros cerrados
em aberto os deixaste.
ARCEBISPO
Isso e mais podes dizer.
DIABO
Ora pois, alto. Embarcar.
ARCEBISPO
Não tenho contigo d’ir.
DIABO
Senhor haveis de vir
para povoar nosso lugar.
Vês isso?
Vossa senhoria irá
em cem mil pedaços feito
e para sempre estará
em água que ferverá
e nunca sereis desfeito.
Lição:
B
ARCEBISPO
Spiritus meus tu hechura
attenuabitur meus dias
breviabuntur e tristura
me sobra e a sepultura
não sei por que me fazias.
Non peccavi putredini mee dixi
pai e mãe mia és
vermibus soror et amici
quare fuisti me inimici
senhor de todos poderes?
Responso:
Credo quod redemptor
meus vivit
C
ARCEBISPO
Dai-me alguma esperança
barqueiros do mar do céu
pela ferida da lança
que nos passeis com bonança
para a terra de consolo.
DIABO
É forte cousa
entrar em barca gloriosa.
ARCEBISPO
Oh rainha que ao céu subiste
sobre os coros lustrosa
do que te criou esposa
e tu virgem o pariste.
Pois que suspiro dor
por São João recebeste
com novas do redentor
e mudada a cor
morte em terra desceste.
Oh desperta
pois és porta do céu
levanta-te cerrada huerta
com teu filho nos concierta
mãe de consolação
olha nossa redenção
que Satanás a desconcerta.
CENA 7
Vem a Morte com um Cardeal, e diz a Morte:
MORTE
Vós Cardeal perdoa-me
que não pude mais esperar.
CARDEAL
Oh guia d’escuridão
ladrão da idade
ligeira ave de rapina.
Que mudança
fez mi triste esperança.
Fortuna que m’ajudava
pesou em mortal balança
a firmeza e confiança
que o falso mundo me dava.
A
DIABO
Domine Cardenalis
entre vossa reverência
ireis ver vossos iguais
nas penas infernais
fazendo sua penitência.
Pois morreste
chorando porque não foste
sequer dois dias Papa
e a Deus não agradeceste
vendo quão baixo tu te vestes
e então ele te teu tal capa.
E não quero declarar
coisas más para dizer.
Determinado d’embarcar
e logo sem esperar
que não tens que discutir.
Sois perdido
ouvis aquele gran ruído
no lago dos leões?
Despertai bem o ouvido
vos sereis ali comido
por cães e dragões.
Lição:
CARDEAL
Todo homem que é nascido
de mulher tem breve vida
que quasi flos é saído
e logo presto abatido
e sua alma perseguida.
E não pensamos
quando a vida gozamos
como dela nos partimos
e como a sombra passamos
e em dores acabamos
porque em dores nascemos.
Responso:
Sancte Deus adjuva me
quia in inferno
nulla est redemptio
C
CARDEAL
Marinheiros
remadores verdadeiros
feridas, remos, caravela
embarcai os passageiros
que vós sois nossos remeiros
e a piedade a vela.
DIABO
Socorreos Cardeal
para a mão do senhor.
CARDEAL
Oh rainha celestial
avogada geral
diante do redentor.
Pelo dia
senhora virgem Maria
em que o viste carregar
tal não se conhecia
e vossa vida morria
nos queirais ressuscitar.
CENA 8
Vem a Morte e traz um Papa, e diz a Morte:
MORTE
Vós pai santo pensastes
ser imortal. Tal os vistes.
Nunca me considerastes
tanto vós vos elevastes
que nunca me conhecestes.
PAPA
Já venceste
meu poder me destruíste
com dor descompensada.
Oh Eva por que pariste
esta Morte amara e triste
ao pé da árvore proibida?
Vês-me aqui
mui triste porque nasci
do mundo e vida queixoso
meu alto estado perdi
vejo o Diabo ante mi
e não certo é meu repouso.
DIABO
Venha vossa santidade
em boa hora pai santo
beatíssima majestade
de tan alta dignidade
que morrestes de quebranto.
Vós ireis
neste batel, venhais
comigo a Lucifer
e o dinheiro te tirarão
e os pés te beijarão
e isso logo há-de ser.
PAPA
Sabes tu que sou sagrado
vigário no santo templo.
A
DIABO
Quanto mais de alto estado
tanto mais és obrigado
dar a todos bom exemplo.
E fique claro
a todos manso e humano
quanto mais ser de coroa
antes morto que tirano
antes pobre que mundano
como foi vossa pessoa.
Luxuria te desconsagrou
soberba te machucou
e o mais que te condenou
simonia com engano.
Vem embarcar.
Vedes aquele flagelar
com varas de ferro ardendo
e depois atacando?
Pois ali haveis d’andar
para sempre padecendo.
Lição:
B
PAPA
Quare de vulva me eduxisti
mi corpo e alma, senhor?
Na tua cadeira me subiste
em teu lugar me puseste
e me fizeste teu pastor.
Melhor fora
que do ventre não saíra
e antes não houvera sido
nem olho de homem me vira
e como fogo para cera
me houveras consumado
Responso:
Tem misericordia de mim
que para sempre não chore
manda-me passar daqui
que no inferno não há
quem te ame nem te adore.
C
DIABO
Que me punem esses pontos
depois do que passa no viver?
Olhai senhores defuntos
todos quanto estais juntos
para o inferno haveis d’ir ter.
D
DIABO
Oh pastor
porque foste guiador
de toda a cristandade
temos de ti dor
pede a Jesú salvador
que t’envie piedade.
E
PAPA
Oh gloriosa Maria
por lágrimas sem conta
que choraste naquele dia
que teu filho padecia
que nos livres do tormento
sem tardar
por aquela dor sem par
quando em teus braços o viste
não lhe podendo falar
e o foste sepultar
e sem ele d’ele te partiste.
F
DIABO
Vossas preces e clamores
amigos não são ouvidas
miseráveis tais senhores
irão para aqueles ardores
almas tão escolhidas.
Desferir
ordenemos de partir
desferir bota batel.
Vosotros tereis de ir
que nos erros de viver
não te lembraste d’Ele.
CENA 9
Nota que neste passo os Anjos desferem a vela em que está o crucifixo pintado e todos assentados de joelhos lhe dizem cada um sua oração. Primeiro começa o Papa dizendo:
PAPA
Oh pastor crucificado
como deixas tuas ovelhas
e teu tão caro gado?
Pois que tanto te há custado
inclina a isso tuas orelhas.
EMPERADOR
Redentor
lança a âncora senhor
en el hondón desa mar
de divino criador
de humano redentor
no te quieras alargar.
REI
Oh capitão general
vencedor de nossa guerra
pois por nós foste mortal
não consintas tanto mal
manda remar para terra.
CARDEAL
Não fiquemos
manda que metam os remos
faze a barca mais larga
oh senhor que perecemos
oh senhor que nós tememos
manda-nos pôr a prancha.
DUQUE
Oh cordeiro delicado
pois por nós estás ferido
morto e tão atormentado
como vais alongado
de nosso bem prometido.
ARCEBISPO
Fili Davi
como te partes daqui
para inferno nos envias
a piedade que há em ti
como a negas assi
por que nos deixas, messias?
CONDE
Oh cordeiro divinal
médico de nosso dano
viva fonte perene
nossa carne natural
não permitas tanto dano.
BISPO
Oh flor divina
in adjuvandum me festina
e não te vás sem nós
tua clemência a nós inclina
tira-nos de foz maligna
benigno filho de Deus.