Versão estreada em 27 de Abril, nos Dias da Música de 2018, na Sala Almeida Negreiros do Centro Cultural de Belém.
O Auto da Barca do Inferno é o primeiro espectáculo deste tríptico, do qual fazem parte também o Auto da Barca do Purgatório e o Auto da Barca da Glória. Terá sido apresentado pela primeira vez na corte, em 1517, sendo, talvez, a obra de Gil Vicente mais presente na nossa memória colectiva. Aqui terá lugar uma versão adaptada, em que texto e música se fundem no mais harmonioso canal de expressividade. Mais do que procurar a actualidade da obra, uma vez que é inevitável que esta actue em nós e no nosso tempo – não estivéssemos nós a falar de pecados e moralidade – queremos descobrir uma outra forma de a comunicar.
Inferno mostra o destino das almas num lugar de condenação ou de glória e apresenta uma grande quantidade e diversidade de personagens, sugerindo uma construção mais policromática e contrastada, a partir dos diferentes tipos que articula. E apesar de o viver de cada personagem ser simbolizado pelo(s) objecto(s) que traz consigo, nesta proposta iremos levar isso ao limite, tornando os adereços nas próprias personagens e permitindo aos intérpretes poderem ser agentes da voz ou da musicalidade que dá vida aos diferentes arquétipos.
Auto da Barca do Inferno é um espectáculo de um só fôlego, onde somos constantemente surpreendidos com a entrada de novas personagens, com argumentações, súplicas, acusações e condenações. É de um ritmo fervilhante e divertido, mas ao mesmo tempo acutilante e mordaz, como não podia deixar de ser.
Sara Barros Leitão
Fernando C. Lapa
Ouça Um Excerto
Texto da Partitura
“Auto da Barca do Inferno”
Gil Vicente, 1519
Adaptação Dramatúrgica: Sara Barros Leitão
CENA 1
DIABO
À barca à barca oulá
que temos gentil maré
ora venha o caro a ré.
COMPANHEIRO
Feito feito.
DIABO
Bem está.
e atesa aquele palanco
e despeja aquele banco
pera a gente que virá.
À barca à barca u u
asinha que se quer ir.
Oh que tempo de partir
louvores a Berzebuu.
Ora sus que fazes tu?
Despeja todo esse leito.
COMPANHEIRO
Em bon’ora logo é feito.
DIABO
Abaixa màora esse cu.
Faze aquela poja lesta
e alija aquela driça.
COMPANHEIRO
Oh caça oh oh iça.
DIABO
Oh que caravela esta.
Põe bandeiras que é festa
verga alta âncora a pique.
CENA 2
DIABO
Ó poderoso dom Anrique
cá vindes vós que cousa é esta?
FIDALGO
Esta barca onde vai ora
que assi está apercebida?
DIABO
Vai pera a ilha perdida
e há de partir logo ess’hora.
FIDALGO
Pera lá vai a senhora?
DIABO
Senhor a vosso serviço.
FIDALGO
Parece-me isso cortiço.
DIABO
Porque a vedes lá de fora.
FIDALGO
Porém a que terra passais?
DIABO
Pera o inferno senhor.
FIDALGO
Terra é bem sem sabor.
DIABO
Quê? E também cá zombais?
FIDALGO
E passageiros achais
pera tal habitação?
DIABO
Vejo-vos eu em feição
pera ir ao nosso cais.
FIDALGO
Parece-te a ti assi.
DIABO
Em que esperas ter guarida?
FIDALGO
Que leixo na outra vida
quem reze sempre por mi.
DIABO
Quem reze sempre por ti
hi hi hi hi hi hi hi
e tu viveste a teu
prazer cuidando cá
guarecer porque
rezem lá por ti.
Embarca ou embarcai
que haveis d’ir à derradeira
FIDALGO
Que que que. E assi lhe vai?
DIABO
Vai ou vem. Embarcai prestes
segundo lá escolhestes
assi cá vos contentai.
Pois que já a morte passastes
haveis de passar o rio.
FIDALGO
Nam há aqui outro navio?
DIABO
Nam senhor que este fretastes
e já quando espirastes
me tínheis dado sinal.
FIDALGO
Que sinal foi este tal?
DIABO
Do que vós vos contentastes.
FIDALGO
A estoutra barca me vou.
Ou da barca para onde is?
Ah barqueiros não me ouvis?
Respondei-me. Oulá ou.
Pardeos aviado estou
quant’a isto é já pior
que giricocins salvanor
cuidam cá que sou eu grou.
ANJO
Que mandais?
FIDALGO
Que me digais
Pois parti tam sem aviso
se a barca do paraíso
é esta em que navegais.
ANJO
Esta é. Que lhe buscais?
FIDALGO
Que me leixês embarcar.
Sou fidalgo de solar
é bem que me recolhais.
ANJO
Não s’ embarca tirania
neste batel divinal.
FIDALGO
Nam sei por que haveis por mal
que entre minha senhoria.
ANJO
Pera vossa fantesia
mui pequena é esta barca.
FIDALGO
Pera senhor de tal marca
não há aqui mais cortesia?
Venha prancha e atavio
levai-me desta ribeira.
ANJO
Não vindes vós de maneira
pera ir neste navio
essoutro vai mais vazio
Ireis lá mais espaçoso
vós e vossa senhoria
cuidando na tirania
do pobre povo queixoso.
E porque de generoso
desprezastes os pequenos
achar-vos-eis tanto menos
quanto mais fostes fumoso.
DIABO
À barca à barca senhores.
Oh que maré tam de prata
Oh que maré tam de prata
um ventezinho que mata
e valentes remadores.
Vos me venirés a la mano
Vos me venirés a la mano
Vos me venirés a la mano
a la mano me veniredes.
FIDALGO
Ao inferno todavia
inferno há i pera mi?
Oh triste enquanto vivi
nunca cri que o i havia
tive que era fantasia
folgava ser adorado
confiei em meu estado
e não vi que me perdia.
Venha essa prancha e veremos
esta barca de tristura.
DIABO
Embarque vossa doçura
que cá nos entenderemos.
Tomareis um par de remos
veremos como remais
e chegando ao nosso cais
todos bem vos serviremos.
Entrai entrai entrai
venha a prancha ponde o pé.
FIDALGO
Entremos pois que assi é.
DIABO
Ora senhor descansai
passeai e sospirai
entanto virá mais gente.
FIDALGO
Oh barca como és ardente
maldito quem em ti vai.
DIABO
À barca à barca boa gente
que queremos dar à vela
chegar a ela chegar a ela
muitos e de boa mente.
Oh que barca tão valente.
CENA 3
ONZENEIRO
Oh que barca tam valente.
Pera onde caminhais?
DIABO
Oh que màora venhais
Onzeneiro meu parente.
Como tardastes vós tanto?
ONZENEIRO
Mais quisera eu lá tardar.
Na safra do apanhar
me deu Saturno quebranto.
DIABO
Ora mui muito m’espanto
nam vos livrar o dinheiro.
ONZENEIRO
Solamente pera o barqueiro
nam me deixaram nem tanto.
DIABO
Ora entrai entrai aqui.
ONZENEIRO
Nam hei eu i d’embarcar.
DIABO
Oh que gentil recear
e que cousas pera mi.
ONZENEIRO
Ainda agora faleci
deixai-me buscar batel
E pera onde é a viagem?
DIABO
Pera onde tu hás d’ir.
Havemos logo de partir
Nam cures de mais linguagem.
ONZENEIRO
Mas pera onde é a passagem?
DIABO
Pera a infernal comarca.
ONZENEIRO
Dixe nam vou eu em tal barca
estoutra tem avantagem.
Vai-se à barca do Anjo e diz:
ONZENEIRO
Ou da barca oulá ou
haveis logo de partir?
ANJO
E onde queres tu ir?
ONZENEIRO
Eu pera o paraíso vou.
ANJO
Pois quant’eu mui fora estou
de te levar para lá.
Essoutra te levará
vai pera quem t’ enganou.
ONZENEIRO
Porquê?
ANJO
Porque esse bolsão
tomará todo o navio.
ONZENEIRO
Juro a Deos que vai vazio.
ANJO
Nam já no teu coração.
ONZENEIRO
Lá me fica de rondão
minha fazenda e alhea.
Oh onzena como és fea
e filha de maldição.
Torna o Onzeneiro à barca do inferno e diz:
ONZENEIRO
Oulá ou demo barqueiro
sabeis vós no que m’eu fundo:
quero lá tornar ao mundo
e trarei o meu dinheiro.
Que aqueloutro marinheiro
porque me vê vir sem nada
dá-me tanta borregada
como arrais lá do Barreiro.
DIABO
Entra entra remarás
nam percamos mais maré.
ONZENEIRO
Todavia.
DIABO
Por força é
que te pês cá entrarás
irás servir Satanás porque sempre te ajudou.
ONZENEIRO
Oh triste quem me cegou.
DIABO
Cal-te que cá chorarás.
CENA 4
Vem Joane, o parvo.
DIABO
Quem é?
JOANE
Eu sou.
É esta naviarra nossa?
DIABO
De quem?
JOANE
Dos tolos.
DIABO
Vossa.
Entra.
JOANE
De pulo ou de voo?
Ou pesar de meu avô
soma vim adoecer
e fui màora morrer
e nela pera mi só.
DIABO
De que morreste?
JOANE
De quê?
Samicas de caganeira.
DIABO
De quê?
JOANE
De cagamerdeira
má ravugem que te dê.
DIABO
Entra põe aqui o pé.
JOANE
Oulá nom tombe o zambuco.
DIABO
Entra tolazo enuco
que se nos vai a maré.
JOANE
Aguardai aguardai lá.
E onde havemos nós d’ir ter?
DIABO
Ao porto de Lucifer.
JOANE
Ah ha ha.
DIABO
Ò inferno entra cá.
JOANE
Ò inferno? Ieramá.
JOANE
Hiu hiu barca do cornudo
beiçudo beiçudo
rachador d’Alverca hu ha.
Capateiro da Candosa
antrecosto de carrapato
hiu caga no sapato
filho da grande aleivosa.
Tua molher é tinhosa
e há de parir um sapo
chentado no guardenapo
neto de cagarrinhosa.
Furta cebola hiu hiu
escomungado nas igrejas
burrela cornudo sejas
toma o pão que te caiu.
A molher que te fogiu
per’a ilha da Madeira
cornudo at’à mangueira
o demo que te pariu.
Hiu hiu lanço-te ũa pulha
de pica na aquela
hiu hiu caga na vela
cabeça de grulha.
Perna de cigarra velha
caganita de coelha
pelourinho de Pampulha
mija n’agulha mija n’agulha.
Chega o parvo ao batel do Anjo e diz:
JOANE
Ou da barca.
ANJO
Que me queres?
JOANE
Queres-me passar além?
ANJO
Quem és tu?
JOANE
Nam sou ninguém.
ANJO
Tu passarás se quiseres
porque em todos teus fazeres
per malícia nam erraste.
Tua simpreza t’abaste
para gozar dos prazeres.
Espera entanto per i
veremos se vem alguém
merecedor de tal bem
que deva d’ entrar aqui.
CENA 5
Vem um Sapateiro com seu avantal e carregado de formas e chega ao batel infernal diz.
DIABO
Quem vem i?
Santo Sapateiro honrado
como vens tam carregado.
SAPATEIRO
Mandaram-me vir assi.
Mas pera onde é a viagem?
DIABO
Pera o lago dos danados.
SAPATEIRO
E os que morrem confessados
onde tem sua passagem?
DIABO
Não cures de mais linguagem
que esta é tua barca esta.
SAPATEIRO
Renegaria eu da festa
e da barca e da barcagem.
Como poderá isso ser
confessado e comungado?
DIABO
E tu morreste escomungado
nam o quiseste dizer
esperavas de viver.
Calaste dez mil enganos
tu roubaste bem trinta anos
o povo com teu mister.
Embarca eramá pera ti
que há já muito que te espero.
SAPATEIRO
Pois digo-te que nam quero.
DIABO
Digo-te que hás d’ir si.
SAPATEIRO
Quantas missas eu ouvi
nam me hão elas de prestar?
DIABO
Ouvir missa então roubar
é caminho pera aqui.
SAPATEIRO
E as ofertas que darão
e as horas dos finados?
DIABO
E os dinheiros mal levados
que foi da satisfação?
SAPATEIRO
Ah nam praza ò cordovão
nem à puta da badana
se é esta boa traquitana
em que se vê Joan’Atão.
Ora juro a Deos que é graça.
Vai-se à barca do Anjo e diz:
SAPATEIRO
Ou da santa caravela
podereis levar-me nela?
ANJO
A carrega t’embaraça.
SAPATEIRO
Não há mercê que me Deos faça?
Isto u xiquer irá.
ANJO
Essa barca que lá está
leva quem rouba de praça.
Ó almas embaraçadas.
SAPATEIRO
Ora eu me maravilho
haverdes por gram peguilho
quatro forminhas cagadas
que podem bem ir chantadas
num cantinho desse leito.
ANJO
Se tu viveras dereito
elas foram cá escusadas.
SAPATEIRO
Assi que determinais
que vá coser ao inferno?
ANJO
Escrito estás no caderno
das ẽmentas infernais.
Torna-se à barca dos danados e diz:
SAPATEIRO
Pois diabos que aguardais?
Vamos venha a prancha logo
e levai-me àquele fogo
nam nos detenhamos mais.
CENA 6
Vem um Frade.
FRADE
Tarai tarai tarai tarirão
Tarai tarai tarai tarirão
Tari tarirá tarirá tarirão
Tari tarirá tarirá tarirão
Tari tarirão Tari tarirão
Tari tarirá tarirá tarirão
FRADE
Para onde levais gente?
DIABO
Pera aquele fogo ardente que
nam temestes vivendo.
FRADE
Juro a Deos que nam t’entendo.
E este hábito nam me val?
DIABO
Gentil padre mundanal
a Berzabu vos encomendo.
FRADE
Corpo de Deos consagrado
pela fé de Jesu Cristo
que eu nam posso entender isto
eu hei de ser condenado?
Um padre tam namorado
e tanto dado a virtude
assi Deos me dê saúde
que eu estou maravilhado.
DIABO
Nam façamos mais detença
embarcai e partiremos
tomareis um par de remos.
FRADE
Nam ficou isso n’avença.
DIABO
Pois dada está já a sentença.
FRADE
Pardeos essa seria ela
Como por ser namorado
e folgar com ũa molher
se há um frade de perder
com tanto salmo rezado?
DIABO
Ora estás bem aviado.
FRADE
Mais estás bem corregido.
DIABO
Devoto padre marido
haveis de ser cá pingado.
FRADE
Sabei que fui da pessoa.
Esta espada é roloa
e este broquel rolão.
DIABO
Dê vossa reverência lição
d’esgrima que é cousa boa.
Começou o Frade a dar lição d’esgrima com a espada e broquel que eram d’esgrimir
FRADE
Senhora dá-m’à vontade
que este feito mal está.
Vamos onde havemos d’ir
nam praz a Deos com a ribeira
eu nam vejo aqui maneira
senam enfim concrudir.
DIABO
Padre haveis logo de vir.
FRADE
Si tomai-me lá Florença
e cumpramos esta sentença
e ordenemos de partir.
FRADE
Tarai tarai tarai tarirão
Tarai tarai tarai tarirão
Tari tarirá tarirá tarirão
Tari tarirá tarirá tarirão
Tari tarirão Tari tarirão
Tari tarirá tarirá tarirão
CENA 7
Tanto que o Frade foi embarcado, veo ũa alcoveteira per nome Brísida Vaz, a qual chegando à barca infernal diz desta maneira:
BRÍSIDA VAZ
Oulá da barca oulá.
DIABO
Quem chama?
BRÍSIDA VAZ
Brísida Vaz
DIABO
Entrai vós e remareis.
BRÍSIDA VAZ
Nam quero eu entrar lá.
DIABO
Que sabroso arrecear.
BRÍSIDA VAZ
Nom é ’ssa barca que eu cato.
DIABO
E trazês vós muito fato?
BRÍSIDA VAZ
O que me convém levar.
DIABO
Que é o qu’havês d’embarcar?
BRÍSIDA VAZ
Seiscentos virgos postiços
e três arcas de feitiços
que nam podem mais levar.
Três almários de mentir
e cinco cofres de enleos
e alguns furtos alheos
assi em jóias de vestir
guarda-roupa d’encobrir
enfim casa movediça
um estrado de cortiça
com dez coxins d’embair.
A mor carrega que é
essas moças que vendia.
Daquesta mercaderia
trago eu muita à bofé.
DIABO
Ora ponde aqui o pé.
BRÍSIDA VAZ
Ui e eu vou pera o paraíso.
DIABO
E quem te dixe a ti isso?
BRÍSIDA VAZ
Lá hei d’ir desta maré.
Eu sou ũa mártela tal
açoutes tenho eu levados
e tormentos soportados
que ninguém me foi igual.
Se eu fosse ao fogo infernal
lá iria todo o mundo.
A estoutra barca cá em fundo
me vou que é mais real.
Barqueiro mano meus olhos
prancha a Brísida Vaz.
ANJO
Eu nam sei quem te cá traz.
BRÍSIDA VAZ
Peço-vo-lo de giolhos.
Cuidais que trago piolhos?
Anjo de Deos minha rosa
eu sou Brísida a preciosa
que dava as moças a molhos.
A que criava as meninas
pera os cónegos da sé.
Passai-me por vossa fé
meu amor minhas boninas
olho de perlinhas finas.
E eu som apostolada
angelada e martelada
e fiz cousas mui divinas.
Santa Úrsula nam converteo
tantas cachopas como eu
todas salvas polo meu
que nenhũa se perdeo.
E prouve àquele do ceo
que todas acharam dono
cuidais que dormia sono?
Nem ponta se nam se perdeo.
ANJO
Ora vai lá embarcar
nam estês emportunando.
BRÍSIDA VAZ
Pois estou-vos alegando
o porque me haveis de levar.
ANJO
Nam cures de emportunar
que nam podes ir aqui.
BRÍSIDA VAZ
E que màora eu servi
pois nam m’há d’aproveitar.
Torna-se Brísida Vaz à barca do inferno dizendo:
BRÍSIDA VAZ
Ou barqueiros da màora
que é da prancha que eis me vou
há já muito que aqui estou
e pareço mal cá de fora.
DIABO
Ora entrai minha senhora
e sereis bem recebida
se vivestes santa vida
vós o sentireis agora.
CENA 8
Tanto que Brísida Vaz se embarcou, veo um Judeu com um bode às costas e
chegando ao batel dos danados diz:
JUDEU
Que vai lá ou marinheiro?
DIABO
Oh que màora vieste.
JUDEU
Cuja é esta barca que preste?
DIABO
Esta barca é do barqueiro.
JUDEU
Passai-me por meu dinheiro.
DIABO
E o bode há cá de vir?
JUDEU
Pois também o bode há d’ir.
DIABO
Que honrado passageiro.
JUDEU
Sem bode como irei lá?
DIABO
Pois eu nam passo cabrões.
JUDEU
Eis aqui quatro testões
e mais se vos pagará
por vida do Semifará
que me passeis o cabrão.
Quereis mais outro tostão?
DIABO
Nenhum bode há de vir cá.
JUDEU
Por que nom irá o Judeu
onde vai Brísida Vaz?
JUDEU
Azará pedra meúda
lodo, chanto, fogo, lenha
caganeira que te venha
má corrença que te acuda.
Por el Deu que te sacuda
com a beca nos focinhos
fazes burla dos meirinhos
dize filho da cornuda
JOANE
Furtaste a chiba cabrão.
Pareceis-me vós a mim
carrapato d’Almeirim
enxertado em camarão.
DIABO
Judeu lá te passarão
porque vão descarregados.
JOANE
E ele mijou nos finados
n’egueja de sam Gião.
E comia a carne da panela
no dia de nosso senhor
e mais ele salvanor
cada vez mija na caravela.
DIABO
Ora sus dêmos à vela
vós Judeu ireis à toa
que sois mui roim pessoa
levai o cabrão na trela.
CENA 9
Vem um Enforcado
DIABO
Venhais embora, enforcado
ENFORCADO
Fui bem-aventurado.
Pelos que eu fiz
sou santo canonizado.
Pois morri dependurado
Como o tordo na boiz
DIABO
Entra cá governarás
atá as portas do inferno.
ENFORCADO
Nam é essa a nau que eu governo.
DIABO
Entra que inda caberás.
ENFORCADO
Entremos pois que assim vai.
DIABO
Este foi bom embarcar.
Eia todos apear
que está em seco o batel.
CENA 10
Vem quatro Cavaleiros cantando, os quais trazem cada um a cruz de Cristo, pelo qual senhor e acrecentamento de sua santa fé católica morreram em poder dos mouros, absoltos a culpa e pena per privilégio que os que assi morrem têm dos mistérios da paixão daquele por quem padecem, outorgados por todos os presidentes sumos pontífices da madre santa igreja. E a cantiga que assi cantavam quanto à palavra dela é a seguinte:
CAVALEIROS
À barca à barca segura
barca bem guarnecida
à barca à barca da vida.
Senhores que trabalhais
pola vida transitória
memória por Deos memória
deste temeroso cais.
À barca à barca mortais
porém na vida perdida
se perde a barca da vida.
Vigiai vós pecadores
que despois da sepultura
neste rio esta aventura
de prazeres ou dolores.
À barca à barca senhores
barca mui nobrecida
à barca à barca da vida.
Tornam a perseguir cantando seu caminho direito à barca da glória e, tanto que chegam, diz o Anjo:
ANJO
Ó Cavaleiros de Deos
a vós estou esperando
que morrestes pelejando
por Cristo senhor dos céus.
Sois livres de todo mal
mártires da madre igreja
que quem morre em tal peleja
merece paz eternal.
CAVALEIROS
À barca à barca segura.
E assi embarcam.