Versão estreada em 28 de Abril, nos Dias da Música de 2018, na Sala Almeida Negreiros do Centro Cultural de Belém.

Purgatório retoma as ideias e processos trabalhados em Inferno, mas constitui uma unidade autónoma. “São representações distintas de almas humanas, num conjunto que se vai formando: Purgatório conhece Inferno, Glória conhece Inferno e Purgatório”, como diz Cardeira Villalba.

Purgatório terá sido apresentado na capela de um Hospital, para que os doentes pudessem assistir ao auto, comportando, assim, a função didática de ser apresentado a quem está a sentir de perto a doença ou a morte. 1518 é o ano a que se atribui a primeira apresentação pública desta obra e é também o ano da peste em Lisboa, pelo que a actualidade da doença é tão pertinente que se imiscui discretamente no auto.

“Purgatório é, simultaneamente, um espaço e um tempo, o tempo de espera num cais de embarque. É esperar e não embarcar. Os três autos com barcas passam-se no Purgatório, mas é em 1518 que este surge como uma instância nova, um destino (provisório) que não é o Paraíso nem o Inferno e para onde não há barca – há só o ficar em cena na margem do rio, à espera de outro destino que há-de vir depois do fim do auto”, como escreve José Camões.

Assim, O Auto da Barca do Purgatório tem uma construção mais linear e alargada, sugerindo movimentos horizontais e sustentados, com alguns cirúrgicos pontos de contraste ou de ruptura. Esta dinâmica reflectir-se-á numa proposta cénica e sonora, que, apesar de beber da mesma estética que acompanha o tríptico, torna a obra absolutamente distinta das demais”.

Sara Barros Leitão
Fernando C. Lapa

Ouça Um Excerto


Texto da Partitura

“Auto da Barca do Purgatório”

Gil Vicente, 1519

Adaptação Dramatúrgica: Sara Barros Leitão

PRÓLOGO

Primeiramente entram três Anjos cantando o romance seguinte com seus remos:

ANJO
Remando vão remadores
barca de grande alegria
o patrão que a guiava
filho de Deus se dizia.
Anjos eram os remeiros
que remavam a profia
estandarte d’esperança
oh quem bem que parecia.
O mastro de fortaleza
como cristal relozia
a vela com fé cosida
todo mundo esclarecia
A ribeira mui serena
que nenhum vento bolia.

E logo entra o Arrais do Inferno e diz:

DIABO
Ah santo corpo de mim
corpo de mim consagrado
como está isto assim
sem ninguém estar aqui
neste meu porto dourado?

Agora que está breado
de novo o caravelão
espalmado e aparelhado
mais largo bô quinhão
que o passado.

Quanto mais se chega a fim
do mundo a todo andar
tanto a gente é mais ruim
e juro ò corpo de mim
que já canso de remar.

Cumpre-me d’aparelhar
um valente barinel
ou ũa nau singular
em que possa mais levar
que num batel.

E não remar senão tal via
e depois haver carraca
que cobiça e simonia
inveja e tirania
nenhuma delas afraca.

Ala ala saca saca

à terra à terra mortais
cerrar o leme esta banda
e não curar doutro cais
porque a lei dos mundanais
isto manda.

ANJO
Quem quer ir ò paraíso?
À glória à glória senhores
oh que noite pera isso
quão prestes quão improviso
sois celestes moradores.

CENA 1

Entra um lavrador.

ANJO
Aviai-vos e partir
que vossa vida é sonhar
e a morte é despertar
pera nunca mais dormir
nem acordar.

Agora que a madre pia
frol de toda perfeição
está com tanta alegria
pedi a sua senhoria
gloriosa embarcação
que sua é a barcagem.
Pedi-lhe como avogada
por lacrimosa linguagem
que nos procure viagem
descansada.

Fala-lhe com alegria
canta-lhe como souberes
visita a virgem Maria
nossa via nossa guia
frol de todalas mulheres.

Quando aqui lh’apareceres
roga-lhe que t’apareça
com piadosos poderes
por que a alma que tiveres
não pereça.

DIABO
Quero ora meter a vela
e deitar a prancha fora
e arrumar a caravela
e deitar do junco nela
se vier qualquer senhora.
E que é isto na màora?

LAVRADOR
Que é isto? Cá chega o mar?
Ora é forte cagião.

DIABO
Alto sus quereis passar
ponde i o chapeirão
e ajudareis a botar.

LAVRADOR
Da morte venh’eu cansado
e cheio de refregério
e não posso mal pecado.

DIABO
Põe eramá i o arado.

LAVRADOR
Dou-t’eu muito de mau mês.
Com’eu a morte passei
logo o medo ficou finto
enha cédola amanhei
e meus negócios deixei
como homem de bô retinto.

Nem fico a dever duas favas
nem um preto por pagar.

DIABO
E os marcos que mudavas
dize: por que os não tornavas
outra vez a seu lugar?

LAVRADOR
E quem tirava do meu
os meus marcos quantos são
e os chentava no seu?

Dize pulga de judeu
que lhe dizias tu er então?

DIABO
Foste o mais ruim vilão.

LAVRADOR
Bofá salvanor salvado
vós mentis coma cabrão
quer me queirais mal quer não
não dou por isso um cornado.

DIABO
Pois por que vens carregado?

LAVRADOR
Por que seja conhecido
por lavrador muito honrado
e tenho a glória merecido
que sempre fui perseguido
e vivi mui trabalhado.

ANJO
Vinde cá homem de bem
pera onde quereis ir?

LAVRADOR
Queria passar além

pera a glória do senhor.
Samica de lá sereis.

ANJO
E vens tu merecedor?

LAVRADOR
E que fez lá o Lavrador
pera andar cá ò través?

ANJO
Pode ser mui obstinado
e não querer-se arrepender.

LAVRADOR
Bofá senhor mal pecado
sempre é morto quem do arado
há de viver.

Nós somos vida das gentes
e morte de nossas vidas
a tiranos pacientes
que à unhas e à dentes
nos tem as almas roídas.
Pera que é parouvelar?
Que queira ser pecador
o lavrador
não tem tempo nem lugar
nem somente d’alimpar
as gotas do seu suor.

Na igreja bradam co ele
porque assobiou a um cão
e logo a escomunhão na pele
o fidalgo maçar nele
atá o mais triste rascão.
Se não levam torta a mão
não lhe acham nenhum direito
muito atribulados são
cada um pela o vilão
per seu jeito.

ANJO
Que bens fizeste na vida
que te sejam cá guiantes?

LAVRADOR
Ia ao bodo da ermida
cada santa Margaída
e dava esmola aos andantes
benzia-me pela manhã
levava o Credão at’ò cabo.

DIABO
Depois tomavas a lã
da mais e a mais sã
e davas ò dízimo a do rabo
temporã.

E o mais fraco cabrito
e o frangão ofegoso
com repetenado espírito.

LAVRADOR
Ó fi de puta maldito
triste avezimau tinhoso
lano pecador e errado
não, vai, não me dezimei?
Dize sabujo pelado.

DIABO
Tornaste tu o mal levado?

LAVRADOR
Si tornei.

Perol que dizeis vós lá
sejo eu como deve ser
ou que modo se terá?

ANJO
É mui caro d’haver cá
aquele eternal prazer.

LAVRADOR
Já o eu lá ouvi dizer
perol o evangelho diz:
quem for batizado e crer
salvus est. Ora dizer
sede juiz.

ANJO
Digo que andes assi
purgando nessa ribeira
até que o senhor Deus queira
que te levem para si
nesta bateira.

LAVRADOR
Bofá logo quisera eu
que m’atormenta este arado
e dera muito do meu
pois que já hei de ser seu
tirar-me deste cuidado.
Ó mundo mundo enganado
vida de tão poucos dias
tão breve tempo passado
tu me trouveste enganado
e me mentias.

CENA 2

Vem ũa regateira per nome Marta Gil e diz:

MARTA GIL
Ui e que ribeiros são estes?

DIABO
Venhais embora Marta Gil.

MARTA GIL
E donde me conhecestes?

DIABO
Folgo eu bem porque viestes
oufana e dando ò quadril.

MARTA GIL
Vedes outro perrexil
e marinheiro sodes vós
ora assi me salve Deos

Em que eu seja lavradora
bem vos hei de responder.

DIABO
Não vos agasteis vós ora
que ou lavradora ou pastora
aqui vos hei de meter.

MARTA GIL
Ui mana e quem no deu
ide beber
que bem vos conheço eu.

DIABO
E eu também vos sei nascer
e vi fataxas fazer
que o que trazeis é meu
e há de ser.

MARTA GIL
E que cousas são fateixas?
Fateixado te veja eu.

DIABO
Os feitos que feitos leixas
e o povo cheio de queixas.

MARTA GIL
Cal-te almário de judeu.

DIABO
Não sabes tu que viveste
lavradora e regateira?

MARTA GIL
Ora comede-la que vos preste
ui e que gaio é ora este
de ribeira.

Sabedes vós João Corujo
todos fazem seu proveito
olhade o frei caramujo
bargante que não tem cujo
quant’a agora é o feito feito.

Nam sabes tu que o respeito
do mundo é em ganhar
e sobr’isso é seu proveito
ou a torto ou direito
apanhar.

Fui em tempo de cobiça
cada tempo sua usança
s’eu morrera de preguiça
tiveras muita justiça
e eu pequena esperança.

Vendia minha lavrança
um ovo por dous reais
um cabrito se s’alcança
té quatro vinténs não mais
tendes vós isto em lembrança?

Um frangão por um vintém
e ũa galinha sessenta
e acerta-se também
que às vezes vem alguém
que as leva por setenta.

DIABO
E pera que era água no leite
que deitavas ieramá?

MARTA GIL
Ó diabo visses tu
bofé asinha o eu direi
como é palreiro Jesu
fora este cucurucu
bom sacretário del rei.

Amanhade-lhe o atafal
nadar patas patarrinhas
corregede-lhe o enxoval
onças de raiva mortal
nas badarrinhas.

DIABO
Valha-te a ti Marta amiga
que estamos enfeitiçados.

MARTA GIL
Embarcade lá esta figa.

DIABO
Passará esta fadiga
seremos desembargados.

MARTA GIL
Anjos bem aventurados
meterei o canistrel
que trago os testos britados
carregam estes pecados
que fazem lançar o fel
a bocados.

ANJO
E pera que eram eles cá?

MARTA GIL
Pera o demo. E que sei eu?

ANJO
Ora pois embarca lá.

MARTA GIL
Melhor creio eu que será
Jesu Jesu benzo-m’eu.
Ó bento Bertolameu
e vós virgem do Rosário
polo filho que Deus vos deu
esta noite vosso e seu
haja reparo.

Bem sabedes vós senhora
que venho eu manifestada
e fui vossa lavradora
em que pecasse alguma hora
venha a piadosa alçada.

Anjos ajudade-me ora
que vos veja eu bem casados
não me deixedes de fora
por aquela santa hora
em que todos fostes criados.

ANJO
Não é tempo cá d’orar
quant’há pera merecer.

MARTA GIL
Manos eu quero provar
que em todo tempo há lugar
o que Deus quer.

ANJO
Grande cousa é oração
purga ao longo da ribeira
segura de danação
terás angústia e paixão
e tormento em grã maneira.

Isto até que o senhor queira
que te passemos o rio
será tua dor lastimeira
como ardendo em gram brasio
de fogueira.

MARTA GIL
Ó esperança esperança
a mais certa pena minha
com toda esta segurança
tu és a mesma tardança
em figura de mezinha.
Oh quem tal arrepender
tal maneira de penar
lá soubesse no viver
oh quem tornasse a nascer
por não pecar.

CENA 3

Entra um pastor

DIABO
Queres embarcar Pastor?

PASTOR
Praz.

DIABO
Entra neste batel.

PASTOR
Irra pulha é isso salvanor
s’eu não fora pulhador
j’ela passava o burel.

Digo senhor pesadelo
vós sabereis isto bem
estando em Val de Cubelo
deu-me dor de cotovelo
Todavia morri porém.
E fui-me per esse chão
a Deus doce alma dizer
com meu cacheiro na mão
sem sóis motrete de pão
nem fome pera o comer
se vem à mão.

E vinha ora bem descado
de topar mar nem marinha
avonda espantalho honrado
ao morrer deixei o gado
e ò amo e quanto tinha.

Se não anda que te vás
enha mãe nega gritar
e chorar que chorarás
agora quero passar
porém não me levarás.

DIABO
Porquê?

PASTOR
Sois buzaranha
e mais fede-vo-lo bafo
e jogatais de gadanha
e tendes modão d’aranha
e samicas sereis gafo.

DIABO
Gafo eu?

PASTOR
Abém
não hei d’ir pera cajuso
em que me custe algorrém
chinfrão ou meu vintém
ir direito como o fuso
pera além.

DIABO
Dize rústico perdido
fizeste tu por saber
o Pater Noster comprido?

PASTOR
E pera que era ele sabido?

DIABO
Porque o havias de dizer.

PASTOR
A quem?

DIABO
A quem te criou.

PASTOR
Al tem ele que comer.

DIABO
Não fizeste o que mandou.

PASTOR
Calai-vos senhor Jão Grou
já sei quem m’há de levar
sei quem sou.

DIABO
Digo-te Pastor amigo
que foste grand’ pecador.

PASTOR
Senhor tartarugo digo
que mentis como bestigo
salvanor.

Fala em tua menencória
e não fales em passar
e conta lá outra história
porque em festa de tal glória
não hás ninguém de levar.

ANJO
Pastor tu queres passar?

PASTOR
Este é melhor artesão.

ANJO
Folgarei de te levar
se te ajuda o bem obrar
que as obras remos são.

Morreste tu bom cristão?

PASTOR
Que sei eu que vós dizeis.

O Pater Noster quereis?
Já eu soube bom quinhão dele
no santo faceto andei já
e nunca me dei per ele
e a Ave Maria a par dele
soube eu lá já tempos há.

Fui assi per ela andando
nos intes vitus cajuso
ali andav’eu sandejando
esvaecendo e cansando
então dei à treva o uso.
Assaz avonda ao pastor
crer em Deus e não furtar
e fazer bem seu lavor
e dar graças ao senhor
e fugir de não pecar.

Crer na igreja assi junta
com paredes e telhados
alicerces e furados
e não curar de pergunta
e dar ò demo os pecados.
Eu nunca matei nem furtei
nem uvas alguma hora
nem nunca xemeriquei
nem xeremicos falei
como lá se usa agora.

DIABO
Vai vai cantar à gamela
não andavas tu namorado
perdido por Madanela?

PASTOR
E pois que lhe fiz a ela
pera dizer que é pecado?

Ũa vez armei-lhe o pé
na chacota em Vilarinho
e ainda pola abofé
Costança Anes que viva é
me meteu naquele alinho.

DIABO
Não na foste tu esperar
pera a danares vilão?
E começou de bradar
que a querias forçar.

PASTOR
Ó fi de puta cabrão
quisera eu e ela não
porque a trèdora fogiu
e se isto assi foi ladrão
que pecado se seguiu
pois não houve concrusão?

Juro ao corpo verdadeiro
que tu te podes gabar
que casado nem solteiro
não anda tão vil barqueiro
sobolas águas do mar.

Soma Anjo eu menfestei
abarrúncio Satanás.

ANJO
Faze o que t’eu direi
e depois embarcarás
e eu mesmo te passarei.
Purga ao longo do rio
em grão fogo merecendo.

PASTOR
E quando parte o navio?
Senhor s’eu não tenho frio
pera que hei d’estar ardendo?

CENA 4

Vem ũa Pastora menina e temendo a visão do ĩmigo que lhe apareceu na morte diz:

MOÇA
Jesu Jesu que é ora isto?
Ave Maria Ave Maria
qu’é do meu cão qu’eu trazia?
Ó chagas de Jesu Cristo
vão em minha companhia.

Eu sonho triste de mi
oh coitada como tremo
minha mãe valei-me aqui
que quando de vós parti
não cuidei d’achar o demo.

Mais angústia é o temor
do ĩmigo que o da morte
tomo a Deus por valedor
pois me cortas e dás dor
má mazela que te corte.

DIABO
Mochacha venhas embora.

MOÇA
Mas na negra pois te vejo
oh desaparece-me ora
que faleci ind’agora
em mui perigoso ensejo.

Porque era moça e cuidei
que da velhice gouvira
e com tal dor acabei
que de mi parte não sei
nem tenho ponta de sira.
Nam sei quem m’há d’ajudar
não sei quem m’há de valer
não sei quem m’há de passar
não sei se m’hão de matar
outra vez ou que há de ser.

Tir-te diante de mi
verei os anjos de Deus.

DIABO
Entrai vós filhinha aqui.

MOÇA
Oh cal-te triste de mi.

DIABO
Eu vos levarei aos céus
entrai minha Policena
não temais nada senhora.

MOÇA
Arre lá uxte morena.

DIABO
Ó minha rainha Ilena
entrai e vamo-nos ora.

MOÇA
Cal-te cal-te na màora
cuidas que m’hás d’enganar
porque assi me vês pastora.

DIABO
Entrai minha matadora
pois que Deus vos quis matar.

MOÇA
Não vedes vós o quebranto
que se quer pôr em feição?

DIABO
Senhora por concrusão
não quero de vós somente
senão dardes-me essa mão
se disso fordes contente.

E se m’eu gabar de vós
má pesar veja eu de mi
e iremos ambos sós
onde estão vossos avós
ora entrai ireis aqui.

MOÇA
Jesu Jesu raiva na casta
comendo ò decho a amargura
mãe de Deos como m’agasta
má ravugem na tarasca
espezinhada triste escura.

ANJO
Leix’-ò pastora vem cá.

MOÇA
Ó anjos minha alegria
vista de consolação
por virtude e cortesia
ensinai-me per que via
passarei à salvação.

ANJO
Conhecias tu a Deus?

MOÇA
Muito bem. Era redondo.

ANJO
Esse era o mesmo dos céus.

MOÇA
Mais alvinho qu’estes véus
o vi eu vezes avondo.

Como o sino começava
logo deitava a correr.

ANJO
Que lhe dezias?

MOÇA
Folgava
e toda me gloriava
em ouvir missa e o ver.

ANJO
Pastora bom era isso.

DIABO
Era a mor mexeriqueira
golosa que d’emproviso
se não andavam sobre aviso
lá ia a cepa e a cepeira.
E mais quereis que vos diga
é refalsada e mentirosa.

MOÇA
Era ainda rapariga.

DIABO
Se tu foras minha amiga
eu me calara tinhosa.

MOÇA
Ó anjos levai-me já
tirai-me deste ladrão.

ANJO
Não podes ainda ir lá.

MOÇA
Tão moça hei de ficar cá?
Não parece isso razão.

ANJO
Vai ao longo desse mar
que é praia purgatória
e quando a Deus ordenar
nós te viremos passar
da pena à eterna glória.

CENA 5

Vem um menino de tenra idade e diz:

MENINO
Mãe e o coco está ali
querês vós estar quedo co ele?

DIABO
Passa passa tu per i.

MENINO
E vós quereis dar em mi
ò demo que o trouxe ele.

DIABO
Bé.

MENINO
Filho da puta.

DIABO
Vós estais muito garrido
tirar-vos-ão dom perdido
dos olhos a marmeluta.

MENINO
Eu vos tomarei a vós
à porta de minha tia
entonces veremos nós
os cães de vossos avós
que estavam na mancebia.

DIABO
Bé.

MENINO
Mãe s’ele quer-me comer
e meu pai não vos dará.

DIABO
Bé.

MENINO
Dona se lho eu disser
e ela matar-vos-á
então ireis a morrer.

DIABO
Bé.

MENINO
Aquele s’eu chamar
o nosso Joane.

DIABO
Bé.

MENINO
Não querês senão berrar?

DIABO
Onde hás d’ir ou pera quê?

MENINA
Fica minha mãe chorando
só porque m’eu vim de lá.

ANJO
Mas fica desvariando
que tu és do nosso bando
e pera sempre será.

Fez-te Deus secretamente
a mais profunda mercê
em idade de inocente
eu não sei se sabe a gente
a causa por que isto é.

CENA 6

Cantando metem os Anjos o Menino no batel e entra um Taful, e diz o Diabo:

DIABO
Ó meu sócio e meu amigo
meu bem e meu cabedal
vós irmão ireis comigo
que não temestes o perigo
da viagem infernal.

TAFUL
Eis aqui flux dum metal.

DIABO
Pois sabe que eu te ganhei.

TAFUL
Mostra se tens jogo tal.

DIABO
Tu perdes o enxoval.

TAFUL
Não é isto flux com rei.

DIABO
Baralha o jogo e partamos.

TAFUL
Paga qu’eu não jogo em vão.

DIABO
Lá no frete descontamos
quer ganhemos quer percamos
tudo nos fica na mão.

TAFUL
Muito m’agasto eu aqui
que tu tens mui mau semblante
e pareces-me enfim
por da ré muito ruim
e malino por d’avante.

DIABO
Mas tornemos a jogar
porque tenho saudade
de te ouvir arrenegar
e descrer e blasfemar
do mistério da trindade.

TAFUL
Aramá como tu falas
tão senhor desta alma minha.

DIABO
Não sei como agora calas
renegando a soltas alas
de Deus e da ladainha.

Este dia e as oitavas
por paços salas e cantos
oh quanta glória me davas
quando à hóstia blasfemavas
e desonravas os santos.

TAFUL
Quant’eu sempre ouvi dizer
quem bem renega bem crê.
Isto vos faço eu saber
e quando isto não valer
entraremos por mercê.

Vai-se à barca do paraíso e diz:

TAFUL
Haverá cá piedade
dum homem tão carregado?

ANJO
Mas enfinda crueldade
que ofendeste a majestade
renegando seu estado.

TAFUL
Vedes qu’estava ocupado
na grã perda que perdia.

ANJO
E Deus que culpa t’havia
Taful mal aventurado
sem valia?

Renegar tão feramente
da imperatriz dos céus
ó pranta de má semente
arderás no fogo ardente
com toda a ira de Deus.

TAFUL
Má nova é essa para mim
se assim for como dizes
digo que eramá cá vim
porém esperai-me assim
falarei tamalavez.

Deus não quis hoje nascer
por remir os pecadores?

ANJO
E pois que queres dizer
que só c’o seu padecer
se salvam renegadores?

TAFUL
A perneta me forçou
que era senhora de mi.

DIABO
Mente que ele s’encrinou
nunca estrela renegou
nem tal há i.

Sempre jogava o fidalgo
bispo escudeiro ou que é.

ANJO
Tomai-o dai-lhe de pé.

DIABO
Nosso é.

TAFUL
Estai imigos.
Senhores deste santo nascimento
não terei alguns favores?

ANJO
Tafules e renegadores
não tem nenhum salvamento.

Fim.
Saem-se os Diabos do batel e com ũa cantiga muito desacordada levam o Taful. E os Anjos cantando levam o Menino e fenece esta segunda cena.